A "Volta pelo largo"
Extracto de um texto [link] do professor Francisco Contente Domingues.
"Aos navegadores portugueses puseram-se depois dois problemas distintos. O primeiro consistiu na orientação em mar alto. A progressão ao longo da costa africana fazia-se sem dificuldades a partir da costa portuguesa, beneficiando de ventos e correntes favoráveis. Quanto mais se progredia para Sul, porém, maior era a dificuldade do retorno, que se fazia contra as condições físicas de navegação. Para os pequenos navios, como a barca e a caravela, que se empregaram a início, o retorno a Portugal junto à costa tornava-se cada vez mais penoso. A partir de um momento se que pode hoje situar nas datas indicadas, os navegadores portugueses viram-se obrigados a fazer a chamada "volta pelo largo", ou seja, a internarem-se no mar alto para contornar os ventos que sopravam constantemente no sentido aproximado Norte-Sul junto à costa africana. Essa manobra, perfeitamente estabelecida na década de 1440, só podia ser feita recorrendo ao cálculo de pelo menos uma coordenada, a latitude, para o que se impunha a observação comparada das alturas dos astros. A novidade não consistiu nesta observação, conhecida e praticada havia muito, mas no facto de ter sido feita a bordo e dela se obter a posição do navio no alto mar, deixando o cálculo da longitude à perícia dos pilotos, já que só a puderam determinar com rigor quando o quarto protótipo do cronómetro de John Harrison provou a sua suficiência, no decurso do terceiro quartel do século XVIII.
A consolidação da navegação astronómica está suficientemente documentada nas navegações portuguesas do século XV, de uma forma que deixa claro o carácter empírico de um processo que consistiu essencialmente na capacidade de encontrar soluções técnicas para problemas práticos, quando e à medida que eles surgiram. A náutica astronómica não é resultado do ensino ministrado em qualquer escola, que aliás não podia ensinar a navegar em mares dos quais se desconheciam os condicionalismos físicos da navegação, nem tão pouco da importação de ensinamentos teóricos produzidos fora de contexto. Para os marinheiros do século XV, nem o Infante D. Henrique nem os astrónomos alemães tinham respostas adequadas: essas encontraramnas eles na navegação quotidiana, aprendendo primeiro a usar a observação simples das alturas dos astros,recorrendo a instrumentos adequados para o efeito, e depois com recurso a tabelas de declinações mais sofisticadas, que aliás só apareceriam pelos finais da centúria.
O segundo problema decorreu também da necessidade de ultrapassar uma outra limitação evidente da náutica mediterrânica. A utilização da agulha em rumos Norte-Sul mostrou desde logo as consequências de um fenómeno que foi observado cedo mas compreendido tarde, e resolvido mais tarde ainda (ou seja, no século XVI): refiro-me à declinação magnética, ou seja a não coincidência do Norte magnético (indicado pela agulha de marear) com o Norte geográfico. A questão não era muito grave nas primeiras etapas da exploração da costa ocidental africana, mas colocou-se com cada vez mais premência com a vulgarização das viagens em mar aberto.
É claro que as primeiras cartas náuticas, feitas de acordo com a técnica mediterrânica, faziam concordar uma coisa com a outra. Quer dizer: o piloto orientava-se pela agulha magnética e as cartas estavam desenhadas sobre os rumos da agulha magnética, portanto concordes uma com a outra. O problema começou a evidenciar-se quando uma navegação correcta com a agulha e a carta não levava o piloto para o ponto onde julgava, mas para um local diferente. Nos inícios do século XVI as cartas náuticas portuguesas apresentaram uma novidade importante, a introdução da escala de latitudes posicionada a partir do Equador, como se observa pela primeira vez no planisfério anónimo português de 1502, também conhecido pelo nome de Planisfério de Cantino, baptizado a partir do nome do espião italiano ao serviço do Duque de Ferrara, Alberto Cantino, que o conseguiu obter subrepticiamente em Lisboa. Mas logo em 1504, uma outra carta portuguesa apresentava uma novidade inusitada: junto à Terra Nova via-se uma escala de latitudes oblíqua, em si prova suficiente da forma como pilotos e cartógrafos procediam: colocados perante um problema, surgia uma solução prática imediata para o solucionar. Se as cartas conhecidas eram praticamente inúteis no Atlântico Norte, dada a diferença de posição entre o ponto estimado pelos pilotos e aquele em que os navios se encontravam efectivamente, por as cartas serem concordes aos rumos magnéticos mas a declinação da agulha apresentar desvios já acentuados, então uma segunda escala de latitutes, colocada de maneira "errada", fazia a concordância entre o rumo magnético e o ponto na carta.
Se tudo isto é bem conhecido historiograficamente, outro tanto não se pode dizer de uma vertente diferente do mesmo problema, para cuja situação concreta não há a meu ver resposta satisfatória: refiro-me à extraordinária escassez de cartas náuticas portuguesas do século XV."
DOMINGUES, F. (2006). Navegar em Novos Mares e Representar os Novos Mundos: Náutica e cartografia nas navegações portuguesas. Discurso proferido no simpósio internacional »Novos Mundos – Neue Welten. Portugal e a Época dos Descobrimentos« no Deutsches Historisches Museum, em Berlim, 23 a 25 de Novembro de 2006.
"Aos navegadores portugueses puseram-se depois dois problemas distintos. O primeiro consistiu na orientação em mar alto. A progressão ao longo da costa africana fazia-se sem dificuldades a partir da costa portuguesa, beneficiando de ventos e correntes favoráveis. Quanto mais se progredia para Sul, porém, maior era a dificuldade do retorno, que se fazia contra as condições físicas de navegação. Para os pequenos navios, como a barca e a caravela, que se empregaram a início, o retorno a Portugal junto à costa tornava-se cada vez mais penoso. A partir de um momento se que pode hoje situar nas datas indicadas, os navegadores portugueses viram-se obrigados a fazer a chamada "volta pelo largo", ou seja, a internarem-se no mar alto para contornar os ventos que sopravam constantemente no sentido aproximado Norte-Sul junto à costa africana. Essa manobra, perfeitamente estabelecida na década de 1440, só podia ser feita recorrendo ao cálculo de pelo menos uma coordenada, a latitude, para o que se impunha a observação comparada das alturas dos astros. A novidade não consistiu nesta observação, conhecida e praticada havia muito, mas no facto de ter sido feita a bordo e dela se obter a posição do navio no alto mar, deixando o cálculo da longitude à perícia dos pilotos, já que só a puderam determinar com rigor quando o quarto protótipo do cronómetro de John Harrison provou a sua suficiência, no decurso do terceiro quartel do século XVIII.
A consolidação da navegação astronómica está suficientemente documentada nas navegações portuguesas do século XV, de uma forma que deixa claro o carácter empírico de um processo que consistiu essencialmente na capacidade de encontrar soluções técnicas para problemas práticos, quando e à medida que eles surgiram. A náutica astronómica não é resultado do ensino ministrado em qualquer escola, que aliás não podia ensinar a navegar em mares dos quais se desconheciam os condicionalismos físicos da navegação, nem tão pouco da importação de ensinamentos teóricos produzidos fora de contexto. Para os marinheiros do século XV, nem o Infante D. Henrique nem os astrónomos alemães tinham respostas adequadas: essas encontraramnas eles na navegação quotidiana, aprendendo primeiro a usar a observação simples das alturas dos astros,recorrendo a instrumentos adequados para o efeito, e depois com recurso a tabelas de declinações mais sofisticadas, que aliás só apareceriam pelos finais da centúria.
O segundo problema decorreu também da necessidade de ultrapassar uma outra limitação evidente da náutica mediterrânica. A utilização da agulha em rumos Norte-Sul mostrou desde logo as consequências de um fenómeno que foi observado cedo mas compreendido tarde, e resolvido mais tarde ainda (ou seja, no século XVI): refiro-me à declinação magnética, ou seja a não coincidência do Norte magnético (indicado pela agulha de marear) com o Norte geográfico. A questão não era muito grave nas primeiras etapas da exploração da costa ocidental africana, mas colocou-se com cada vez mais premência com a vulgarização das viagens em mar aberto.
É claro que as primeiras cartas náuticas, feitas de acordo com a técnica mediterrânica, faziam concordar uma coisa com a outra. Quer dizer: o piloto orientava-se pela agulha magnética e as cartas estavam desenhadas sobre os rumos da agulha magnética, portanto concordes uma com a outra. O problema começou a evidenciar-se quando uma navegação correcta com a agulha e a carta não levava o piloto para o ponto onde julgava, mas para um local diferente. Nos inícios do século XVI as cartas náuticas portuguesas apresentaram uma novidade importante, a introdução da escala de latitudes posicionada a partir do Equador, como se observa pela primeira vez no planisfério anónimo português de 1502, também conhecido pelo nome de Planisfério de Cantino, baptizado a partir do nome do espião italiano ao serviço do Duque de Ferrara, Alberto Cantino, que o conseguiu obter subrepticiamente em Lisboa. Mas logo em 1504, uma outra carta portuguesa apresentava uma novidade inusitada: junto à Terra Nova via-se uma escala de latitudes oblíqua, em si prova suficiente da forma como pilotos e cartógrafos procediam: colocados perante um problema, surgia uma solução prática imediata para o solucionar. Se as cartas conhecidas eram praticamente inúteis no Atlântico Norte, dada a diferença de posição entre o ponto estimado pelos pilotos e aquele em que os navios se encontravam efectivamente, por as cartas serem concordes aos rumos magnéticos mas a declinação da agulha apresentar desvios já acentuados, então uma segunda escala de latitutes, colocada de maneira "errada", fazia a concordância entre o rumo magnético e o ponto na carta.
Se tudo isto é bem conhecido historiograficamente, outro tanto não se pode dizer de uma vertente diferente do mesmo problema, para cuja situação concreta não há a meu ver resposta satisfatória: refiro-me à extraordinária escassez de cartas náuticas portuguesas do século XV."
DOMINGUES, F. (2006). Navegar em Novos Mares e Representar os Novos Mundos: Náutica e cartografia nas navegações portuguesas. Discurso proferido no simpósio internacional »Novos Mundos – Neue Welten. Portugal e a Época dos Descobrimentos« no Deutsches Historisches Museum, em Berlim, 23 a 25 de Novembro de 2006.