A Dobragem do Cabo Bojador

“Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.”
Fernando Pessoa

Sempre se tem procurado nos baixios, nas restingas, nas correntes, nos açoreamentos, enfim, na natureza das circunstâncias palpáveis e visivelmente suspeitas, uma razão, ou um conjunto delas, para achar a dificuldade na passagem do Cabo Bojador.

Desde a Antiguidade, e muito em particular desde que os filósofos jónicos projectaram uma mundividência pensada à escala mediterrânica, o Mundo representado adquire expressão plástica, desde então tida como uma posição de verdade. As propostas medievais mais não fizeram do que acentuar e legitimar essa visão, contribuindo para a mitificação dos espaços, particularmente os que, como o Bojador, nitidamente identificavam limites de uma conjectura geográfica. O Bojador assinalava por isso, e sobretudo a partir das cosmologias alto-medievas, o lugar ermo e esquina fantástica das terras emergentes habitadas, conspicuidade para lá da qual se empurravam as palavras angustiadas e escatológicas próprias dos lugares ctónicos. O que estava em causa na passagem deste cabo representava pois muito mais do que uma preocupação geográfica, era acima de tudo uma impossibilidade doutrinária de contornos teológicos.

É por tudo isto não só altamente admissível que a dobragem do Cabo Bojador configure uma circunstância de viva controvérsia, se não mesmo de inqualificável solução para os marinheiros quatrocentistas, como depois de ultrapassado se possam ter desmascarado velhos dogmas num complexo momento traumático. Em boa verdade, a dobragem do Cabo Bojador é objectivamente uma dobragem de mentalidades e, nesse sentido, assinala um momento charneira entre o medievalismo e a Idade Moderna. A par de dois ou três outros momentos dos Descobrimentos, simbolizará de forma pujante o advento do racionalismo moderno.

Popular posts from this blog

Ceuta, Arguim, o Mediterrâneo e o Mar do Norte

Jacome

A feitoria portuguesa de Arguim